Franz Ferdinand é uma das minhas bandas favoritas desde muito tempo. Já fui no show deles duas vezes, no auge da minha adolescência, tenho todos os álbuns em casa, sei cantar praticamente todas as músicas e, mesmo com todas as mudanças de sonoridade e formação, queria muito ver eles ao vivo de novo. Daí um post do Instagram oficial da banda me lembrou que o álbum de debut fez 20 anos agora em fevereiro, com a gravadora lançando uma versão especial em vinil como comemoração, mas eu moro no Brasil e é óbvio que isso jamais chegaria aqui. Então, pra minha devida homenagem a um dos meus álbuns favoritos da vida, resolvi fazer um post sobre como o Franz Ferdinand fluiu sexualmente no cenário do rock lançando uma das últimas grandes pedradas do gêneros.
Ter sido uma adolescente na segunda metade dos anos 2000 me deu a chance de viver a última grande onda musical que rolou no mundo (antes, claro, do kpop). O nascimento da figura massiva da Lady Gaga rolou nessa época, dentro de uma casa ao lado do Akon e com um raio atravessando o rosto tal qual David Bowie já havia feito em 1973 com Aladdin Sane, bíblia do glam rock e o pai de todas as divas exóticas junto com seu gêmeo Ziggy Stardust, de um ano antes. O hip hop ganhou braços extras articulados em outros gêneros quando Kanye West lançou sua tríade de álbuns e um feat com o Coldplay, algo tão inusitado quanto aquele número que Run-DMC e Aerosmith tinham protagonizado e, de alguma forma, quebrou paradigmas sobre diferentes tribos e todo aquele papo noventista a respeito do assunto. E o rock continuou sendo rock.
Quer dizer, continuou de uma forma modificada, se encaixando nos espaços onde ainda se achava bem-vindo porque, apesar de ainda ser um grande ditador de tendências, o rock vinha se dissipando. Era 1994 quando o grunge, recém-nascido dos restos mortais dos anos 80 e que negava qualquer perfumaria colorida da new wave, foi morto junto com o Kurt Cobain, que encabeçava o movimento. O que se viu depois disso foram as dissoluções das bandas restantes da cena e a introspecção dos jovens ainda enlutados pela perda daquele que mais os deu ouvidos na primeira metade dos anos 90. Bandas como Radiohead, Coldplay e Snow Patrol também vinham de um período complicado com os excessos públicos do britpop e se emaranharam no mainstream com composições melancólicas e existenciais. A diversão foi praticamente extinta.
Até alguém começar uma revolução.
Pra falar sobre a música (e o álbum) que eu escolhi abordar nesse post, a gente precisa fazer uma parada obrigatória em Nova York, mais especificamente em 2001. Todo mundo tem uma opinião diferentes sobre The Strokes, que eles não são os responsáveis pelo surgimento do garage rock revival ou que, simplesmente, a banda não é boa, mas é inegável o fato de que eles tinham uma fórmula nas mãos, junto de um punhado de músicas do Lou Reed como inspiração, e ultrapassaram todos os limites fazendo o básico. Nada no álbum de estreia é brilhante, virtuoso, estupendo; os vocais do Julian Casablancas são abafados como se estivesse cantando dentro de uma lata, por cima de arranjos despreocupados, relaxados, talvez debochados. Era como se fosse uma extensão do grunge, com a mesma premissa, e uma forma bem mais verdadeira de se continuar o legado juvenil que Kurt Cobain deixou pra trás. Até o nome do álbum parece nada demais. “É isso mesmo?”, alguém pergunta. Sim, é.
O Is This It foi tão significativo pro rock como entidade musical na época que o vocalista do The Killers disse em entrevista exclusiva pra NME em 2016 que a estreia dos Strokes acertou ele em cheio. Formada no mesmo ano em que o Is This It saiu, Brandon Flowers confessou que ficou deprimido com a perfeição das músicas do álbum e todo o material dos Killers até aquele momento foi descartado, restando apenas a icônica Mr. Brightside pra contar história (e cujo sucesso o guitarrista dos Strokes, Nick Valensi, criticou anos depois). Além dos Killers, outros artistas altamente influenciados pelo Is This It são Arctic Monkeys (que acabou lançando anos depois outro álbum seminal do gênero e revolucionou a forma de se compartilhar música pelas décadas seguintes) e o nosso assunto do post: Franz Ferdinand.
Tá, mas quem são os Franz Ferdinand? Por que as bandas da cena indie tinham nomes tão estranhos como esse? E como eles lançaram uma das músicas mais atemporais da história?
Um inglês, filho de pai grego e morador de Glasgow, na Escócia, Alex Kapranos não sabia mais como pagaria as contas depois das tentativas frustradas de se inserir na música. Ele já tinha se arriscado no jazz, no ska e no punk antes de ter contato com o Is This It e formar o Franz Ferdinand em 2001. O nome, ao contrário do que se pensa, não teve inspiração no arquiduque da Áustria, cuja morte foi o estopim para a I Guerra Mundial. Na verdade, após discutirem sobre um cavalo de corrida chamado Arquiduque Ferdinando, acabaram por fazer a associação com a figura histórica e alterar seu significado para criar memórias mais felizes caso eles atingissem certo nível de popularidade, fazendo com que as pessoas passassem a lembrar da banda em vez do assassinato. Porém, a origem acadêmica do nome faz jus à imagem que eles transmitiriam ao longo dos anos.
Junto de Kapranos, que tem formação em teologia e já havia trabalhado como chefe de cozinha e bartender, estava Paul Thomson, multi instrumentista e DJ com quem já tinha tocado na banda The Yummy Fur durante os anos 90; Bob Hardy, estudante de artes que conheceu através de uma ex-namorada e não tinha experiência nenhuma com música antes de ser chamado pro posto de baixista; e Nick McCarthy, com quem trocou socos durante uma festa por ter roubado sua vodka e também havia estudado jazz no Conservatório de Munique, na Alemanha. Ainda que a formação da banda tenha mudado nos últimos anos (e assim, máximo respeito aos novos integrantes, até porque são pessoas que tiveram conexão com o Kapranos em diferentes épocas), aqui mora a essência do Franz Ferdinand e como isso foi imprescindível pro álbum de estreia ser o que é: descolado, artístico, sexualmente ambíguo e, acima de tudo, dançante.
Bandas tocavam apenas umas pras outras, apenas trocando referências musicais sem de fato tocar. Queríamos mudar isso. Queríamos fazer as pessoas dançarem.
Alex Kapranos em entrevista para The Independent, 2004
Saído no dia 09 de fevereiro de 2004, o álbum intitulado apenas de Franz Ferdinand foi automaticamente comparado com trabalhos de bandas britânicas já consolidadas no cenário alternativo, como o Gang of Four e o Wire, mas existia nesse álbum uma energia bissexual considerada chique nos anos 2000, principalmente quando a gente pega a imagem do Franz Ferdinand usando calças de alfaiataria extremamente apertadas, cabelos lambidos e olhos contornados de preto. Essa ambiguidade sexual sempre regeu os primeiros anos do que ficaria conhecido como indie sleaze, um estilo meio difícil de se descrever e que, apesar de bem famoso no Tiktok hoje em dia, não conseguiria o mesmo espaço para renascer na sociedade atual. Uma imagem emblemática do indie sleaze como objeto de sexualidade é a sinergia entre os dois frontmen do Libertines, Carl Barat e Pete Doherty, expondo todas as feridas no embate altamente obsceno de Can’t Stand Me Now.
Só que o Franz Ferdinand era bem diferente dos Libertines ou qualquer outra banda porque partia pra um lado mais limpo e até soberbo em relação ao que vinha sendo feito na época. Armado de referências históricas e culturais, o álbum é estético e sonoramente bem amarrado, um ciclo infinito de números ecléticos perfeitos pra se desenrolarem numa boate, com letras perspicazes que somem entre as partículas de ar feito vapor barato até o momento em que elas batem de fato. Quem usa o debut do Franz Ferdinand pra dançar, jamais conseguiria pescar o significado das músicas, mas a partir do momento que a compreensão se faz presente, é como se a carga energética do álbum se multiplicasse. Dançando por saber e saber porque está dançando: esse é o principal mote do Franz Ferdinand.
Um álbum é como um coletivo de ideias e meio que uma afirmação do momento em que você se encontra, de forma artística, naquela fração de tempo particular. (…) Quando você escuta, por exemplo, o primeiro álbum do Velvet Underground, é possível perceber uma identidade completa ali, um mundo inteiro de ideias.
Alex Kapranos em entrevista para o BBC Breakfast, 2022
O debut da banda é recheado de auges, que se dividem em extremos de violência (Jacqueline, This Fire), de comédia (Tell Her Tonight, Cheating on You), de sexualidade explícita (Darts of Pleasure, Michael), de romance e todas as suas peculiaridades (Auf Achse, Come on Home) e de cinismo (The Dark of the Matinée, 40’). E é interessante observar que, apesar de ter uma uniformidade entre as instrumentações, a tracklist se contradiz a todo momento. A faixa que abre o álbum em um jogo de guitarras incrível, como se elas fossem pular pra fora dos fones de ouvido a qualquer momento e atacar quem tá escutando, mas quando ela acaba, começa a galhofa de Tell Her Tonight, que parece ser erro de algum engenheiro de mixagem que acabou colocando um ensaio da banda no CD oficial. Cada música tem sua funcionalidade e um contexto próprio, elas conseguem existir separadamente, mas colaboram muito melhor juntas. É uma viagem millennial ouvir o Franz Ferdinand de cabo a rabo.
E onde entra Take Me Out nessa história?
A história dessa música é uma daquelas que a gente fica intrigado do começo ao fim e acaba pensando sobre como tudo isso deu certo. Kapranos tinha assistido ao filme Círculo de Fogo (Enemy at the Gates) com uma ex-namorada e ficou fascinado com a cena em que os personagens de Jude Law e Ed Harris se encarando através das lentes dos seus respectivos rifles durante a Batalha de Stalingrado, na II Guerra Mundial. A tensão construída na cena, onde nenhum dos lados dá um passo à frente e dispara o tiro, foi a principal inspiração para que Kapranos escrevesse a letra de Take Me Out, como uma metáfora inimaginável para uma história de amor.
Quando as duas partes sabem que estão apaixonadas, mas ninguém quer expor suas vulnerabilidades ou fazer um movimento com o risco de deixar com que o outro saiba como você se sente.
Alex Kapranos em entrevista para o podcast Song Exploder, 2022
Uma característica muito forte nas composições do Alex Kapranos é a sugestão. Por muitos anos, fãs, críticos e ouvintes num geral se perguntavam sobre o que se tratavam as canções da banda porque nunca foi algo muito claro. A respeito disso, Kapranos diz que escrever letras é como escrever poesia, onde você precisa ser imediato ao mesmo tempo em que é reticente, deixando pistas para que as pessoas possam buscar por si mesmas o significado do que acabaram de ouvir. Esse é um pensamento que eu compartilho muito, principalmente quando aquela discussão perigosa sobre arte verdadeira surge. Esvaziar o significado da arte por beleza ou complexidade é uma besteira. Quando Take Me Out saiu, ninguém sabia ao certo sobre o que era e a música acabou sendo reduzida ao estágio de bom rock pra se tocar nas rádios, beirando o nível de insuportável por conta do escândalo de jabá da Sony no ano seguinte.
Mas a letra de Take Me Out é excelente. E a forma que os instrumentos conduzem essa história, as guitarras rasgadas num embate eterno, a morosidade do baixo, a bateria catapultando a música pras alturas, como se realmente fosse uma guerra que poderia ser evitada caso as pessoas envolvidas não tivessem medo de demonstrar suas fraquezas e admitir seus sentimentos, dá o complemento necessário pra música ser o que é, uma junção de todos os fragmentos que o álbum de estreia da banda carrega consigo. Take Me Out é violenta, cínica, até um pouco engraçada, mas também é repleta de amor e sexualidade, um pacote completo da confusão que é gostar de alguém, numa embalagem que vai direto ao ponto, sem firulas, sem guitarras virtuosas demais, apenas passa a mensagem objetiva. Uma antítese juvenil, um grito que escapa sem querer no meio da multidão. Uma revolução dançante que até garotas poderiam curtir.
Se você estiver sozinho,
Saiba que eu estou aqui, esperando por você,
Estou apenas a uma mira,
Estou apenas a um tiro de distância de você,
E se você for embora,
Vou me quebrar ao meio, ficarei em pedaços
Estou apenas a uma mira,
Estou apenas a um tiro,
E aí podemos morrer
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