No agora longínquo ano de 2020, com um vírus perigoso batendo perna pelo planeta, as pessoas se recolheram em casa e passaram a refletir sobre a mortalidade. Enquanto não existia vacina, o mundo deu uma desacelerada e, pra quem acompanha música, o cenário não foi tão diferente. Já discuti sobre isso em algum momento, mas essa época da indústria parece ter virado os olhos pro passado num sentimento coletivo de nostalgia, de buscar momentos felizes na memória que pudessem desviar a atenção para tudo de ruim que acontecia naqueles dias tenebrosos.
É aqui que a YUKIKA se encaixa. Apesar de ter surgido com um single no comecinho de 2019, foi no ano seguinte que ela lançou seu magnum opus chamado Soul Lady, e arrebatou de vez o kpop numa onda que eu gosto de chamar de neo city pop. Ela não foi a primeira e, provavelmente, não vai ser a última, mas foi a artista que deixou um grande impacto nas demos e instrumentais que foram produzidos a partir dali, ainda que todo mundo de dentro da indústria prefira morrer do que aceitar que uma japonesa cantando em coreano um gênero nascido e procriado a exaustão no Japão foi quem de fato inaugurou essa coleção de lançamentos semelhantes.
E aí isso aconteceu.
Tão rápido quanto a ascensão foi a “queda” do tal neo city pop na Coreia do Sul. Entre aspas porque, como já comentei mais pra cima, não enxergo bem como uma queda; gêneros não morrem, só adormecem. Mas vejam só que curioso: quem encabeça essa reticência é justamente a YUKIKA, que anunciou sua aposentadoria da música assim que o Time-Lapse saiu. E, apesar de todas as piadas com a nova vida de casada que ela deve tá levando, eu entendo e até endosso esse movimento que considero esperto e bem maduro por parte dela.
Em 2021, semanas depois do seu primeiro (e único) EP timeabout, YUKIKA disse que gostaria de lançar uma trilogia de álbuns, mas nunca deixou claro se começaria daqui ou se o Soul Lady já fazia parte disso. Hoje, com todo esse alvoroço de aposentadoria e último álbum, eu acredito que a gata já tinha isso na cabeça por muito tempo: Time-Lapse é a última parte da sua trilogia não só musical, mas de vida, de história, de conquistas pessoais. Que nem sempre são aquelas que a gente planeja desde o princípio, mas nossas prioridades mudam ao longo do percurso. Qualquer ser humano está sujeito a isso.
Se em Soul Lady ela contava sobre os receios de ser uma japonesa em solo coreano e em timeabout, ela disserta sobre como o tempo age diante dos acontecimentos e as nossas expectativas em situações turbulentas, o Time-Lapse é um resgate. É o ato de se recolher dentro de um abraço de mãe, é reconhecer que nem sempre as coisas caminham do jeito que a gente quer e tá tudo bem voltar atrás em decisões. Nesse meio tempo sem lançar nada, a YUKIKA saiu da outra empresa, casou e talvez tenha descoberto que já cumpriu sua função na música por enquanto.
Por isso o álbum de covers parece ser a escolha apropriada, e sua versão de I want to be closer to you soa tão melancólica quanto a original. É como se fosse um encerramento de um anime shoujo meio fantasioso onde todas as coisas deram errado, mas no último segundo se encaixaram, e a heroína segue vivendo no anonimato depois de muito esforço pra salvar o mundo, muito satisfeita mesmo sem ninguém saber que ela é a grande responsável pela paz. Esse parágrafo é perfeito pra descrever o papel da YUKIKA no kpop da nova década, inclusive. O city pop foi catapultado pro mainstream em determinada época, mas a pessoa que serviu de inspiração nunca teve uma chance concreta de brilhar.
Quando soube da aposentadoria, fiquei bem triste. Por achar que a espera por novos lançamentos fosse em vão, com certeza, mas também porque a YUKIKA é uma dessas artistas estrangeiras que estouraram a bolha em solo coreano sem de fato acontecerem de verdade. Todo produtor que ouviu NEON em 2019 ficou maluco, mas nenhum convite ou parceira se concretizou. As mudanças constantes de gravadora também devem ter detonado a vontade da YUKIKA de seguir em frente, e é algo que eu digo desde que tenho esse blog: numa terra de idols, qual o preço da liberdade artística?
A sensação de ouvir I want to be closer to you e o restante do Time-Lapse é a mesma que eu imagino os soviéticos tendo quando em 1980, com as Olimpíadas acontecendo em Moscou, assistiram a figura enorme do ursinho Misha formada por cartões interativos na plateia derramando uma lagriminha pelo fim dos jogos mais boicotados da história até aquele momento. Um mascote olímpico e uma figura de um país rival fazendo música boa no território inimigo são mais políticas do que parecem, e machuca quando uma delas não dá certo como deveria. Mas é nessa reflexão que eu desejo vida longa à YUKIKA, perto ou longe dos estúdios, e obrigada por me ensinar que as coisas nem sempre são o que a gente quer que seja.
Vocês sabiam que agora eu vendo minhas artes? Lá na Colab55 tem algumas opções de produtos com estampas que eu fiz e você pode comprar pra ajudar essa pobre coitada que escreve o blog.
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texto muito lindo e sensível rafa, conheço muito pouco da discografia dela mas terminei com lagrimas nos olhos, é um sentimento unico entender o quanto um artista representa pra gente e vc expressa isso de uma forma tão delicada que é impossivel não se emocionar junto
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